Frankenstein, de Guillermo del Toro

A VERDADEIRA ORIGEM DA AMEAÇA (NÓS)

Eram, para minha surpresa, pouquíssimas as referências que eu tinha sobre o clássico personagem Frankenstein – e muito provavelmente essa ignorância teria se prolongado até sabe lá quando se não fosse o cineasta mexicano Guillermo del Toro ter lançado a sua versão, em cartaz num único (!!!) cinema aqui da capital federal. O monstro com esse nome, surgido no romance homônimo escrito por Mary Shelley e publicado em 1818, há muito resvalou na cultura pop; e era assim que eu o percebia, como um alegre habitante de festas de halloween, como bobo protagonista de remakes cinematográficos ou teatrais. Obviamente, na literatura ele seguia e segue vivíssimo, não só pelo nobre parentesco com o mito no qual se baseia – sendo seu subtítulo “Ou o Prometeu moderno” – e por ser um dos precursores da ficção científica, como pela própria qualidade de sua escrita (fato esse que ainda pretendo atestar).

Adentrando com algum esforço, pela via da memória, um pouco mais fundo no raso baú dos meus conhecimentos da obra, agrego tratar-se de um monstro fruto de uma experiência científica que, uma vez parido, sai do controle de seu criador e se torna um problema, possuidor que é de uma força física descomunal. Nessa toada, insisto, sem o filme de del Toro, meu interesse pelo personagem jamais teria saído do (quase não)-lugar. Foi o interesse dele, del Toro, que me despertou, haja vista o sensacional A forma da água, seu filme anterior – e, no fundo, toda uma filmografia em que monstros dão as caras, em que o cineasta se permite delirar através deles (lembremos do belo O labirinto do Fauno). Frankenstein, somado a esse histórico, corria o risco de ser um pouco de “mais do mesmo”. Só que não; até pelo fato de que, em nosso imaginário, como acima exposto, ele já existe, é quase um habitué. O que há de novo no pensamento desse diretor nessa sua versão da clássica história? Por que ele, reconhecido criador de monstros memoráveis, resolveu recorrer a esse, tão “batido”?

Antes de responder a essas perguntas creio que é preciso falar um pouco mais da natureza dos monstros toronianos. Eles são puros de sentimento, detêm toda uma ressonância romântica de bom selvagem e nos mostram o quanto, no fundo, é a sociedade, nós, aquilo a ser temido – o quanto os sinais estão trocados. Mary Shelley fez parte do movimento romântico em sua terra natal, a Inglaterra, integrou os círculos mais exclusivos dessa corrente de pensamento por lá; e Del Toro, um romântico atual, foi, desta feita, beber na fonte. Se um olhar crítico do poder da ciência e da tecnologia já estava presente em A forma da água – com todo o aparato militar voltado para a contenção e, no limite, dissecação desse novo ser que surge na selva amazônica –, agora temos o cientista que ressuscita os mortos (ou partes deles) e cria um ser indestrutível, não só pela sua força quanto pela sua capacidade regenerativa. O solo de interrogações – ou a episteme, se quisermos – de del Toro é estritamente a mesma (e é romântica).

Pois bem, e não poderíamos dar a essa exploração filosófica através do cinema o caráter de uma fórmula? Uma fórmula de fazer dinheiro, ou, em todo caso, de prolongar algum tipo de sucesso? Alguns talvez hão de ver dessa forma (quem sabe isso explique a pecaminosa falta de programação, aqui, em diversas salas de cinema tidas como alternativas). Eu em particular acho que não. Há uma urgência nesse apelo à origem, à matriz. A ida de del Toro a Frankenstein tem, a meu ver, a feição de uma união de forças frente a algo que hoje aí está, hiperpresente à nossa volta (nas salas de aula, nas redes, consultórios, palestras e nos debates públicos e privados): a inteligência artificial. Convém ouvir o que ele tem a dizer através, claro, das suas imagens em movimento.

Victor Frankenstein, o cientista criador do monstro – ou será melhor chamá-lo de robô? – é alguém que não mede esforços para ultrapassar a barreira da morte. Antes mesmo de atingir seu objetivo, é confrontado pela personagem de sua futura cunhada, Elizabeth – por quem ele se apaixona –, sobre a responsabilidade de parir algo dessa natureza sem antes ter desenvolvido a capacidade de escutar suas possíveis angústias, de aceitá-lo como interlocutor válido. E uma vez parido e, graças a um mestre/amigo que a certa altura atravessa seu caminho, instruído e ciente de sua identidade, é o próprio Frankenstein quem lhe apresenta um questionamento similar. É tremenda a atualidade desse filme.

Há grande narcisismo na ciência e no mundo tomado pela tecnologia dos dias atuais, algo que possivelmente os românticos do século XIX já começavam a se dar conta e a querer postular um contraponto, gestar um antídoto. Frankenstein fecha com uma citação de Lord Byron que se refere ao coração (esse que pulsa enquanto vida há): “e o coração irá se partir, mas partidamente ele irá adiante”. Refletindo acerca disso, penso que essa criatura, Frankenstein, pode essencialmente ser definido como um coração a mais que veio ao mundo; porém, de cara, já todo partido (não é, por acaso, intrinsecamente feito de pedaços?). Deu trabalho, mas ele se achou. 

Somos, na verdade, todos um pouco Frankenstein desde o momento em que nos damos conta que, diferente das condições intrauterinas, o mundo aqui fora não responde, via de regra e de forma imediata, aos nossos múltiplos e sempre urgentes anseios (gerando as tais das feridas narcísicas). Precisamos saber ouvir, a fundo, o outro à nossa volta, certamente tão alquebrado quanto nós. Aceitar isso na medida em que caminhamos, em que seguimos adiante, parece ser o grande segredo – e o mais potente antídoto a essa criação que ora nos ameaça enquanto espécie.

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O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho

DE VENTO EM POPA (E AGULHA NO SULCO)

Ontem assisti ao O agente secreto, novo filme do diretor pernambucano Kleber Mendonça Filho, numa sessão matutina lotada, no Cine Brasília, durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro; e saí feliz da vida por ter visto algo que coroa uma trajetória cinematográfica que acompanho – e que tinha tido, a meu ver, a certa altura, um tropeço. Refiro-me a Bacarau, o qual, depois de O som ao redor e Aquarius (o primeiro dos quais permanece na minha memória como uma espécie de abalo sísmico), mergulhou de cara num maniqueísmo exagerado e quase sem possibilidade de volta.

Está certo: se formos ver, a série de ficções acima (lembrando que o longa anterior desse diretor foi o sensacional documentário Retratos fantasmas) tem, em sua composição e totalidade, esse ingrediente cuja dosagem, como uma pimenta muito forte numa comida, requer parcimônia. O cinema de Mendonça Filho é um cinema sobre o Brasil, este país desigual como poucos e, portanto, com forte presença de bandidos, mas também de gente de enorme valor, inteiros (e inteiras) mocinhos(as). É quase inevitável, dado o tema, a tensão – e aqui abro um parêntese a propósito de um outro fantástico filme brasileiro recente, O último azul, do também pernambucano Gabriel Mascaro, uma ficção que se passa num contexto distópico eminentemente brasileiro (de uma exuberante Amazônia), mas que, contrariamente, aposta todas as fichas na luta individual (e no limite do escrúpulo) de uma mulher pela sua liberdade, sob ameaça de uma legislação etarista em vigor, algo que poderia perfeitamente acontecer em qualquer arranjo político soberano moderno.

O agente secreto se passa majoritariamente no Brasil da plena ditadura militar (1977), na cidade do Recife, e tem bandidos e mocinhos que vão se delineando à medida que transcorre. Como em O som ao redor, lá pelas tantas aparecem os matadores de aluguel; como em Aquarius, há uma rede de vizinhos que se frequentam solidária e festivamente (pode-se dizer que isso também é traço presente em Bacurau). Há, também, as lendas urbanas, o ritmo, o som e até mesmo as locações recifenses, tornadas íntimas, de Retratos fantasmas. Como cereja desse bolo de familiaridades, há um ilustre ator europeu, Udo Kier (que fez o grande vilão em Bacurau), desta feita na pele de um alfaiate judeu que engana os vilões locais (uma versão do esquadrão da morte, hoje conhecidos como milicianos) se passando por ex-soldado alemão da Segunda Guerra.

Porém, voltemos ao essencial: há, como marca inscrita no inteiro corpo desse filme, como nos demais, o exercício do poder. Um poder que poderia ser brando, pois, além de valentia, há grande suavidade nos corações de muitos brasileiros – a flagrante maioria –, mas que, na verdade, é extremamente vil, até mesmo podre, como os vários cadáveres que surgem ao longo da película. Há uma ditadura, não nos esqueçamos – e o título do filme, um tanto surpreendente, não nos deixa olvidar essa guerra em curso, quando agir nas sombras é fundamental.

E, por essa via, o pensamento logo se estende para o Ainda estou aqui, de Walter Salles, o terceiro filme de sucesso internacional da temporada. Eu diria que O agente… pode ser visto como a versão nativa (e punk) desse outro filme “sobre” a ditadura. Ambos têm o grande mérito de abordá-la indiretamente: o de Salles, mostrando seus agentes, é verdade – e o gigantesco sofrimento imposto a famílias comprometidas com o bem comum –, mas não as torturas por eles perpetradas nos “porões”; Mendonça Filho, excluindo os militares das Foças Armadas, mas evidenciando como esses, na exceção característica do seu “regime”, permitiram que bandidos nas polícias estaduais e nas empresas estatais da época agissem livre e impunemente. Tanto um quanto o outro desses filmes trazem um Brasil decente e deveras grande às voltas com os escroques que por aqui costumam (ou costumavam, até quinta-feira passada, 11/09/2025) circular; com a sutil (ou talvez nem tanto) diferença de que o de Mendonça Filho parte de uma coordenada muito mais popular: ao passo que a família Paiva se entretinha ao som de Je t’aime, moi non plus, de Serge Gainsbourg e Jane Birkin, o som que ressoa no novo filme de Mendonça Filho, para além dos pífanos dos maracatus, é o ainda presente (desde Retratos fantasmas), retumbante  e maravilhoso, Meu sangue ferve por você, de Sidney Magal.

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“A Luz”, de Tom Tykwer

ENCURTANDO DISTÂNCIAS?

A Luz, filme do alemão Tom Tykwer, ainda em cartaz, tem muito a nos dizer enquanto seres da periferia do capitalismo no sentido de que é alguém que, imerso numa realidade europeia atual (que não deixa de ser a nossa na medida em que altamente perpassada pelas mídias e pelo universo digital), tem um olhar atencioso para o que está em volta. Prova disso é que, por ocasião da sua exibição há uns três meses num festival de cinema europeu aqui na capital, esse renomado cineasta, um dos meus favoritos na atualidade, esteve presente, acompanhando as quase três horas de sua duração e ficando para um bate-papo no final – mesmo que com a presença de um parco público.

O filme se passa em Berlim nos dias de hoje e retrata uma família composta por um casal e dois filhos adolescentes. Os jovens pais têm uma vida frenética a partir dos respectivos empregos, ambos ligados a questões globais: ele, como publicitário dentro do que parece ser uma multinacional que quer se apresentar como consciente das desigualdades do planeta; ela, como líder de uma ONG atuante na África em projetos que visam comunidades carentes. O casal de adolescentes, por sua vez, vive cada um em sua bolha – de e-games, ele, e de coletivo movido a drogas, festas underground e crítica social, ela. Ninguém tem tempo para ninguém nesse arranjo. O casal mais velho, reconhecendo-se em estágio terminal, recorre a uma terapia de casal; a garota engravida e realiza um aborto, nada clandestino, acompanhado pelo pai – e com total desconhecimento da mãe –; o garoto tem fobia social e raramente sai do quarto e do mundo virtual onde disputa torneios a distância. Juntos, percorrem um fio da navalha do qual não se dão conta, tão imersos que estão nas suas cavernas de Platão. Até que a corda arrebenta na forma da funcionária que cuidava da casa, que sofre um infarto fulminante enquanto faz seu serviço.

Isso os obrigou a procurarem uma nova funcionária. E o que se lhes apresentou foi uma mulher síria, da mesma idade aproximada do casal e com pouco tempo de Alemanha (porém falante fluente da língua). Essa mulher acaba sendo uma segunda protagonista do longa na medida em que, habilitada numa técnica de acesso a camadas psíquicas profundas de cada um – a qual faz uso de uma luz piscante emitida por um aparelho diante do qual se deve sentar e ficar com os olhos fechados –, paulatinamente passa a tratar de cada um dos membros. 

Não é caso de dar aqui um spoiler acerca dos motivos que, afinal, levaram essa mulher a ter escolhido a família (ao invés de ter sido escolhida por ela, como era de se esperar). A única observação que talvez caiba é a de que, além de passar a ser elemento capaz de devolver alguma harmonia a esse agrupamento disfuncional, ela introduz um componente de trama (ou mistério) ao filme: não fosse a sua presença teríamos um “simples” retrato familiar, à la Mamãe faz Cem Anos, o clássico de Carlos Saura. Ponho o “simples” entre aspas porque, para mim, esse é justamente o ponto central do filme: a indagação de se existe uma saída para essa família e, por tabela, para a grande família humana. Tirando somente de si – do seu progressismo, das suas boas intenções, da sua alta capacidade performativa (que logo se revela não tão grande assim) – tudo leva a crer que não. A periferia poderia ajudar? Tudo leva a crer que sim, mas desde que não se olhe para ela de forma inocente, ignorante dos seus próprios dramas/infortúnios.

(Na verdade, a periferia já estava presente na família berlinense de uma forma que pode passar, por vezes, desapercebida, na figura de um garoto negro, ainda uma criança, que a frequenta semana sim, semana não. Custa-se a entender quem é, pois é reconhecido como “filho” (um quinto elemento), porém tendo como pai um homem negro, que o larga apressadamente aos cuidados do quarteto, com o compromisso de vir pegá-lo logo a seguir. Descobrimos mais adiante que ele é, de fato, filho biológico da esposa do casal, fruto de um caso extraconjugal com o pai de cidadania africana – algo que só confirma a ultramodernidade da família em tela. O pai do garoto, por sua vez, é alguém que, como a empregada síria, carrega uma história, tem coisas a resolver – como qualquer um de nós, como os próprios quatro membros da problemática família europeia.)

Tudo isso me remeteu ao magistral ensaio do crítico literário Roberto Schwarz sobre Machado de Assis intitulado “Leituras em competição”, o qual li há pouco. Ele trata da recepção crítica desse escritor maior nosso no exterior em diálogo com a sua fortuna crítica local, recorrendo, a certa altura, a uma crônica desse mesmo autor, “O punhal de Martinha”, que aborda, no seu estilo sempre inventivo e ultra preciso (faz uso, segundo Schwarz, de uma “prosa clássica pastichada”), o embate entre o universal e o local – contrapondo a punhalada mortal que a interiorana personagem do título deu, conforme notícia da época, num assediador sexual, àquela por meio da qual a histórica Lucrécia, das páginas de Tito Lívio, tirou a própria vida.

Schwarz inicia abordando o fato de que a crítica local levou 60 anos para reconhecer o fato de que o narrador de Dom Casmurro, Bentinho, não é alguém fidedigno e que a sua suspeita de ter sido traído pela esposa, Capitu, nada mais é do que algo doentio que contaminou seu casamento. E o mais notável é que precisou que alguém de fora, a crítica norte-americana Helen Caldwell, para apontar, em 1960, esse viés decorrente, nas palavras de Schwarz, de uma “prerrogativa patriarcal”! O Brasil ficou discutindo – e alguns seguem nisso até hoje – por “três gerações de críticos” se Capitu havia ou não traído seu marido, sendo incapaz de se dar conta de que a palavra do narrador “não é fiável nem neutra” (nunca foi, na verdade).

Mas isso não encerra o assunto, segue Schwarz, pois dar a Machado um (justo) lugar entre os grandes da literatura universal, mostrando que, ao abordar com tanta fineza um tema como o ciúme doentio, seu Bentinho pode ser irmanado ao Otelo shakespeariano, é algo que não consegue atingir aquilo que a obra desse autor revela sobre especificidades da sociedade brasileira. Em outros termos: como que o local, sendo obviamente conformado pelo universal, ainda assim requer a profunda elucidação literária que foi por ele, Machado, mirada e atingida. Saindo da teoria e voltando à concretude do texto, isso quer dizer que Machado mostra em Dom Casmurro não só como o narrador arruinou seu casamento com alguém que lhe devotou, candidamente, confiança e, no limite, amor, mas, também como procede uma elite que, viciada em privilégios e transbordante de narcisismo, não consegue se relacionar com o que traz genuína paz e/ou felicidade – e que (ainda) está ao seu alcance. O Brasil, na pessoa de suas “famílias abastadas”, presas a uma “idealização de si”, mostra-nos a obra desse escritor, tal qual revelada por Schwarz, padece de uma incapacidade estrutural de se resolver, de dar certo. A letárgica fortuna crítica local da sua obra, como descrita acima, que o diga. Os gatos pingados que foram ver e ouvir o que, aqui na cidade pretensamente cosmopolita e certamente abastada, Tom Tykwer tinha (e ainda tem) a dizer, também.

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Orfeu Extático na Metrópole, de Nicolau Sevcenko

MÁQUINA VERSUS MÁQUINA

As páginas finais de Orfeu extático na metrópole, livro do historiador Nicolau Sevcenko publicado em 1992 (22 anos antes de seu falecimento precoce), são das coisas mais surpreendentes que já li. Elas encerram esse estudo sobre “sociedade e cultura” na cidade de São Paulo nos “frementes anos 20” – esse é o subtítulo da obra – do século passado, através do qual ele obteve a livre-docência na FFLCH da USP; e surpreendem não só por serem breves – pouco mais de quinze páginas (cinco das quais a título de conclusão) frente a um conjunto de pouco menos de 400 que as precedem –, mas porque enveredam para o entendimento de um fenômeno político, a Revolução de 1930, que, absolutamente, não estava no horizonte do tema até então abordado: as mudanças sociais resultantes de inovações tecnológicas e novos arranjos produtivos em curso no mundo, incluindo os nossos trópicos e, em particular, nessa metrópole surgida e consolidada em pouquíssimas décadas.

O tema do estudo está, creio eu, na ordem do dia, haja vista a elevação a insuspeitada potência, a partir da revolução digital, da tecnologia em nossas vidas– a ponto de estarmos às voltas com uma IA que aparenta querer nos escantear de vez. Percebo que há um diálogo fecundo (não efetivado) com um livro anterior a esse em duas décadas, mas que se concentrou numa única tecnologia, a fotografia: Sobre fotografia, da filósofa e ensaísta Susan Sontag. Que gigantesco poder de transformação das percepções, dos ritmos, do conhecimento em si acarretados por esses aparelhos que poderiam não passar de brinquedos – que de fato vieram ao mundo não sendo muito mais que isso!

Meu ramo não é a história – apesar de ter dedicado vários anos da minha vida ao estudo do pensamento de Michel Foucault, um filósofo que, para espanto geral dos seus colegas, recorreu a ela, chegando a “revolucioná-la”, na visão de um douto historiador e colaborador – mas assim mesmo dá para reconhecer algo de profundamente inovador nesse Orfeu extático…. Em primeiro lugar, a opção por se ater a uma cidade, bem no momento em que ela se transformava em metrópole e adquiria as feições de fenômeno irrefreável, vindo a se tornar isso que hoje todos reconhecemos como uma megalópole e centro das decisões (não só econômicas) deste país. Não sendo esse um ponto de interesse, Sevcenko não fornece a data precisa de fundação de São Paulo (1554), limitando-se, no que tange à origem, aos aspectos da localização geográfica da aldeia jesuítica inicial, uma “base catequética” no meio de uma pura floresta e seus rios que tinha, na vasta planície a oeste, condições ecológicas muito propícias para o plantio desse fruto gerador de uma toxina estimulante, o café – o qual somente no início do século XIX viria a se tornar o principal produto de exportação nacional, inicialmente a partir do Rio de Janeiro, só na década de 1870 a partir da província de São Paulo.

O surto extraordinário de crescimento de São Paulo, que a conduziu em pouquíssimo tempo à categoria da metrópole nesses anos 1920, resultou da chegada do café no interior do estado nessa década de 1870, mas também, como somos lembrados, em nível global, da Segunda Revolução Industrial, não mais dependente da energia oriunda do carvão, do ferro e do vapor, mas da eletricidade e do petróleo. Novos arranjos espaciais, comunicacionais e, principalmente, temporais, como também novos fluxos provocavam transformações nos cotidianos e espíritos, direcionando-os cada vez mais para a ação, algo de caráter coletivo (ou mobilizatório), em vez da reflexão, de cunho individual – resultando no que o autor, a certa altura, descreve como “uma sociedade e (…) um tempo em que as atenções haviam transitado da substância humana para as palpitações coletivamente excitadas dos sentidos”.

A segunda inovação que vem no bojo desse estudo é metodológica e diz respeito às fontes que o autor buscou para traçar o painel pretendido. São sobretudo obras vindas a público no âmbito daquilo que reconhecemos como cultura. Não são, em sua grande maioria, documentos ou registros desprovidos de autoria. São expressões artísticas (pintura, poesia, prosa, música) refletindo sobre o mundo à sua volta – um mundo bastante revolto e (não à toa) recém-saído de uma Grande Guerra Mundial. São profundos e extensos o uso e as análises empreendidas por Sevcenko de autores da época, não só nacionais, como alguns cronistas da imprensa local, mas também Manuel Bandeira, Tarsila do Amaral, Villa-Lobos e, menos detidamente, todo o resto dos modernistas; igualmente, de gente como os europeus Blaise Cendrars e Stefan Zweig (que por aqui circularam), culminando, em páginas dignas de um crítico de arte e/ou literário, nos seminais Pablo Picasso e Alfred Jarry. Lendo-o, percebemos que estamos diante de um historiador sumamente versátil, que entende perfeitamente o papel da arte enquanto exercício do espírito humano para dar conta do presente. 

Trata-se, aliás, de uma atitude consciente da parte dele, como demonstra o trecho  final da conclusão em que ele traz, a partir de Sérgio Buarque de Holanda (pensador da época a quem, pelo visto, o autor tinha em alta conta), a noção de “mobilidade em aberto”, “como recurso alternativo ao apelo compulsivo da mobilização”, que a arte embute em si: “’a obra de arte não exprime nunca uma solução, mas simplesmente uma atitude. Diante de cada questão que propõe um determinado momento é sempre possível a nós tomar um ponto de vista novo.’” A máquina artística pode ser ouvida como testemunha do que acontece em determinado período – e quando esse período é um em que as máquinas se encaminham para um redesenho radical do mundo, é aí que essa primeira máquina não só pode, mas deve ser ouvida. Essa seria a grande lição desse livro sensacional.

Mas em quê consiste, precisamente, o inesperado desfecho político de Orfeu extático na metrópole? A política, recordemos, mal havia aparecido até aquela altura – no máximo, uma menção aqui e ali aos prefeitos da capital, basicamente em seus papeis de administradores. E eis que, de repente, surge na reta final da narrativa uma insurreição, a Revolta do Forte de Copacabana no Rio de Janeiro (!), ocorrida em 1922. Esse levante protagonizado por alguns poucos cadetes baseados nesse Forte, ao contrário de outros anteriores (e costumeiros), terminou com a morte desses revoltosos, dando um sinal de que havia algo novo no ar. Esse algo veio dois anos depois, agora já em São Paulo, com uma significativa revolta de tropas federais que adentraram a cidade e foram de lá expulsas após 29 dias de intensos bombardeios por parte do presidente da província, que não os recepcionou em combate direto, mas optou por lhes deixar o controle momentâneo do território para poder, com suas tropas retiradas aos arredores e os aliados que logo chegaram, em seguida dizimá-los a distância, não importando se a cidade e muitos dos seus habitantes iriam junto. Havia, definitivamente, agora estava patente, uma corrente solta de sentimentos e opiniões em circulação, como que à espera de, chegado o momento, tudo galvanizar. Quando, seis anos depois, o presidente da província do Rio Grande, Getúlio Vargas, desembarca num trem cheio de correligionários na capital paulista, é recebido e aclamado por hordas de populares que saem de todos os lados, sendo ele próprio, pelo seu gestual e feições, o mais espantado com os acontecimentos. Não era ele o líder daquilo; era tão somente o veículo dessa corrente à procura de um ponto de descarga. Esse não era, ainda, o momento instaurador da Revolução de 1930 (que só se daria na não realização das eleições, dez meses depois), mas sim aquele em que, como se diz, o estrago já estava feito.

Que lição extrair disso? O que o gigantesco historiador quis afinal nos mostrar com a introdução tão tardia desses incidentes? Bem, parece-me que é algo da ordem de uma política que vai a reboque de embates que são bem mais profundos, acabando por ser mera “ritualização das fantasias e do entusiasmo coletivo”. Os tempos demandavam, a partir de sua nova configuração, ação em vez de reflexão e, na esteira, como enuncia o autor, a “entidade arcaica e regressiva” do mito. Getúlio, que não era bobo, captou isso naquele instante de êxtase e logo se transmutou, tal qual um aprendiz de feiticeiro que, diante do fogo ritual a queimar, aprende o seu ofício “observando o comportamento dos celebrantes”.

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“Memórias de Mim”, de Miriam Virna e Anna França

SÓ OUVINDO

Foram somente três apresentações, das quais eu assisti à primeira. Isso foi há dez dias e só agora eu paro para falar sobre a força desse espetáculo que eu mesmo chamei de singelo e simples nos cumprimentos rendidos após a apresentação – singelo e simples, só se for no sentido de impactante e profundo que essas duas palavras também podem ter. Falo da peça “Memórias de Mim”, em que a excelente atriz Anna França, sob a direção de Miriam Virna, põe em cena histórias estritamente suas, das suas origens, da sua família do interior de Goiás – o que hoje seria, na verdade, Tocantins, como ela mesmo chama a atenção –, que passou por Anápolis e se estabeleceu, por fim, em Taguatinga, Distrito Federal. Uma família formada do encontro de uma mulher kalunga com um descendente de indígenas – não lembro se a etnia foi mencionada. Ou seja, pessoas “da terra”, vindas, ao contrário de mim e de tantos descendentes de europeus à minha volta, de lugares próximos desta capital, hoje uma metrópole.

A peça, um monólogo, mergulha na banalidade de uma conversa como tantas que ocorrem todos os dias neste Goiás, na qual alguém – a protagonista – recebe visitas – os espectadores – no interior do seu humilde lar. Memórias surgem ao sabor da cordialidade, chegando ao ponto de ouvirmos, em minúcia, a receita de um biscoito de polvilho frito, destinada a atravessar gerações (biscoito esse, aliás, que foi servido, quentinho e “divino”, na saída). Membros do clã são também trazidos, em fina descrição e reprodução dos seus trejeitos. “Casos” igualmente, de como a família lidou com esses fatos universais da vida: as incertezas sobre o futuro, a morte, mas também os encontros, a força que um indivíduo é capaz de transmitir a outro quando próximos.

Evidente que daí emerge um componente emotivo. Porém, eu acredito que não está nele o melhor lado dessa obra, e sim no tratamento que é dado a essas “memórias”, um tratamento de luxo, em que se lança mão de recursos teatrais nada triviais. Tem um momento, por exemplo, em que em vez de ser a personagem (na figura, literalmente, da atriz) que enuncia as falas – creio que é na hora da receita –, é um playback que o faz. Esse sutil efeito não tem a intenção, como de costume, de aliviar a barra de quem está em cena, mas, muito ao contrário, obriga que ela se embrenhe pelo caminho da mímica, algo que requer extrema precisão corporal. Como é que um corpo consegue dizer algo que está sendo dito por um outro? Um outro recurso, próprio de quem pensa em profundidade e experimenta com as possibilidades do teatro em sua total amplitude, ocorre quando Anna França narra a morte de sua avó, dirigindo-se para a porta de entrada da sala onde ocorre a apresentação. Ela a abre e, estando ela num ângulo no qual ninguém da plateia consegue ver o que está do outro lado (somente a própria atriz), entra uma luz na sala. Uma luz, claramente, do além, que nos induz a pensar que o mundo real – ou seja, o mundo para além da sala escura onde estamos assistindo à peça – é o mundo dos mortos – e que a nossa vida presente não é nada a não ser um breve momento.

Traduzindo, “Memórias de Mim” coloca todo um aparato (teatral e de ponta) para dar ouvidos a um tipo de fala que não é o que costuma ser mostrado em espetáculos teatrais – a não ser como algo distante ou meramente ilustrativo –: a fala do povo, das pessoas simples, que habitam este chão, o Distrito Federal e todo esse imenso Goiás que o rodeia. E eu enxergo uma tremenda genialidade nisso, conforme explico a seguir.

Eu acompanho o trabalho de Miriam Virna há algum tempo. Ela é minha amiga e, portanto, sou suspeito ao escrever a seu respeito, mas acho que também não é o caso de me calar por conta disso. Trabalhando com a nata dos atores da cidade, colega, digamos, deles, seu trabalho autoral (mas não seu estilo de direção) deu recentemente uma guinada justamente no sentido dessa audição das infinitas histórias que circulam soltas por aí, na cabeça e na memória de gente que atravessa as ruas, praças, comércios e feiras do Distrito Federal. Todo um “mar de histórias” (para ser fiel a uma peça que ela dirigiu há alguns anos em parceria com Mariza Vargas, baseada no livro Haroun e o mar de histórias, de Salman Rushdie). Me refiro ao projeto “Me Escuta”, em que ela e a sua trupe de atores encena, em lugares públicos, todo um cardápio elaborado a partir de relatos que eles colheram previamente por aí, tal como já citado. O público, em cada um desses “happenings”, é quem escolhe qual história irá ser contada, como quem chega num bar e pede seja uma cerveja, seja uma cachaça ou um petisco. “Memória de Mim” claramente é sequência desse trabalho, tendo sido dada, desta feita, atenção única e mais elaborada – do ponto de vista cenográfico – às histórias da própria atriz, Anna França.

Não conversei (ainda) com Miriam acerca desse seu último espetáculo. Não sei, portanto, se ela já se deu conta de o quanto tem se aproximado em seu trabalho desse gênio maior da literatura brasileira, João Guimarães Rosa. Por coincidência, acabo de ler um estudo primoroso sobre sua obra magna, “Grande Sertão: Veredas” (1956), de autoria do professor Willi Bolle. Esse estudo intitula-se “grandesertão.br – O romance de formação do Brasil” (2004, com 2ª edição de 2023) e é onde esse estudioso expõe o fato de que Guimarães Rosa conseguiu com esse romance – e, de resto, em seu projeto literário – nos apresentar um “retrato do Brasil” que superou todos os demais (a lista é longa dentro da tradição ensaística das ciências sociais). Principalmente, “Os Sertões” de Euclides da Cunha (o qual Bolle argumenta ser o alvo de uma reescrita por parte de Rosa em “Grande Sertão: Veredas”), justamente na medida em que encontra uma forma na qual a incomunicação entre as classes, característica deste país, é abordada e superada na figura de um mediador, que é o narrador do romance, o ex-jagunço Riobaldo. Tal qual um professor – profissão que ele também exerce na trama – esse personagem, em sua narrativa em forma de falso diálogo, traz, por vez primeira para a página impressa, “os sertanejos não como objetos, mas como sujeitos da invenção”. Na verdade, é o próprio autor que faz isso, tendo se incumbido, durante uma vida inteira, da tarefa de colecionar histórias da boca do povo e, assim, ter contato com a “oficina de linguagem do povo humilde”.

Riobaldo, esse personagem que se aproxima do seu criador, a certa altura diz ao seu interlocutor que “o sertão está em movimento o tempo todo – salvo que o senhor não vê; é que nem braços de balança, para enormes efeitos de leves pesos”. Eu desconfio de que Miriam e os seus parceiros de teatro já se deram conta disso.

Bolle, por sua vez, assim conclui (o que também aponta para o teatro da minha amiga): “Assim como a paisagem arcaica, também a gramática aparentemente imóvel, que ‘condiciona o pensamento’ de cada indivíduo, é posta em movimento pelo estilo do escritor, isto é, pela sua maneira de ‘colaborar na feitura da língua’. Esse procedimento, que normalmente ocorre num ritmo de longa duração, é acelerado por Guimarães Rosa. Um dos principais métodos de sua invenção consiste na liberação de todas as energias formadoras da língua. Em vez de aceitar a língua ‘despedaçada em regras e palavras’, ele a trata como um ‘ser vivo’.”

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O Mal não Existe, de Ryûsuke Hamaguchi

PARA ALÉM DO BEM E DO MAL

Quando esteve em cartaz, há dois anos, eu lembro de ter assistido a Drive my Car, do japonês Ryûsuke Hamaguchi, duas vezes (a despeito das suas quase três horas de duração). Apesar disso – e talvez por ser uma história bastante complexa, envolvendo amor, traição, culpa, teatro e o labirinto da experiência humana – eu guardava na memória, fundamentalmente, a cena em que a recém assignada motorista leva o visitante, dono do carro, para conhecer a magnífica usina de tratamento de lixo de Hiroshima, a cidade onde ele iria passar uma temporada à frente da montagem (em várias e simultâneas línguas) da peça de Tchecov, Tio Vânia.

Nessa ocasião, ambos se sentam numa espécie de arquibancada em frente ao que parece ser um estuário e, fumando, falam sobre si mesmos, dando início a uma ligação sentimental que iria se consolidar gradativamente ao longo do filme. São protagonistas de um encontro bastante inusitado: ele, um renomado diretor de teatro sediado em Tokyo, viúvo e sabedor das traições de sua finada esposa; ela, uma jovem saída de um vilarejo distante onde havia sobrevivido a um deslizamento de terra e a uma mãe esquizofrênica (morta nesse mesmo deslizamento). Hecatombes, portanto, por toda parte – a partir da própria cidade em que a cena ocorre –, mas também a promessa de que tudo pode ser reconstruído a um ponto tal em que o lixo vira luxo (coisas do Japão?).

E eis que agora chega aos cinemas o novo filme desse diretor, O Mal não Existe, bem mais conciso, porém não menos contundente. E para quem esperava uma nova trama tão opulenta quanto a anterior (com seus diversos ambientes e requintes, inclusive o de acerto de contas com os mortos), um primeiro espanto já logo de cara: a quase totalidade do filme se passa numa pequena comunidade rural, cercada por florestas onde vivem animais selvagens e brotam plantas nativas e uma água puríssima das suas nascentes. As falas são poucas e breves.

Após um tempo nos inteiramos que os seus habitantes são os filhos de uma geração de colonos que lá se instalaram (ou foram instalados) no pós-Segunda Guerra Mundial. É gente que aprendeu a dar valor ao que a dita “natureza” oferece: instalar-se nela requer saberes que, sim, podem até dialogar com o “progresso”, mas desde que esse também esteja disposto a ouvir e aprender. Não é o que acontece.

É possível, numa primeira abordagem interpretativa – e apesar das grandes diferenças de contexto e de complexidade da trama –, conectar ambos os filmes a partir do tema, ecológico, do que fazemos com os nossos rejeitos (ou dejetos). Hiroshima, como vimos, investiu pesadamente no tratamento do seu lixo. No caso dessa comunidade, a principal preocupação de todos os moradores locais diante da proposta que lhes é apresentada, de uma “nova” forma de explorar as riquezas da região, recai sobre o local onde irá ficar a fossa céptica desse mirabolante empreendimento. Sendo aquele um local mais elevado em relação aos demais vilarejos da região, se essa for mal posicionada, correrá o risco de prejudicar a essas outras localidades.

Mas essa não é senão a primeira camada daquilo que liga um filme a outro. Haverá ainda um segundo e bem maior espanto que não convém adiantar (estragando, assim, a virtual ida de quem for ver esse poderoso filme). Cabe aqui somente chamar a atenção para o fato de que temos nele, assim como no anterior, um protagonista que é viúvo e que, além disso, é alguém que se sobressai num certo conhecimento, que acaba por dizer respeito aos seres humanos: se antes era o teatro e a sua linguagem, aqui temos um profundo conhecedor da região habitada. São dois personagens que não são alheios às agruras da vida – em especial às relativas à perda de pessoas queridas –, mas que cuidam para que isso não os afunde: cultivam o novo, cultivam a vida e, principalmente, acima de tudo (acima de toda moral), agem quando essa mesma vida o requer – no caso de Drive my Car, isso inclui se permitir ser conduzido em seu próprio carro.

O que, então, vem a ser o mal? O mal talvez esteja na nossa eterna queixa – como se diz por aí, foi para isso que inventamos a linguagem. Porém, quando se consegue enxergar o real funcionamento das coisas que dizem respeito à vida (e que não excluem a morte), quando a sintonia ocorre nesse exato ponto em que a linguagem em si é desmascarada, o que acontece é que o mal deixa de existir. É então que o amor tem uma chance.

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Releitura, passados 15 anos, de “Uma relação sempre atual: a liberdade recalcitrante de Michel Foucault”

FOUCAULT E EU

Para Paula

Entre 2008 (quando se deu a defesa da tese) e 2010 (a publicação do livro), tiro uma média e decreto que lá se vão 15 anos desde que veio ao mundo esse meu trabalho. Estou relendo-o e me deparo com um misto de espanto e vergonha. Espanto pelo que dei conta de realizar: a interpretação de um legado de pensamento de enorme impacto planetário que, naquele momento, tanto quanto nos anos seguintes, foi bem mal compreendido. Explicarei isso a seguir, não sem antes esclarecer a vergonha a que me referi.

Vergonha pela escrita. Percebo que não é meu forte. Gostaria muito que fosse: ter a calma suficiente para cadenciar o texto, evitando as sentenças gigantescas, cheias de travessões e vírgulas que mais confundem e dificultam do que ajudam o leitor. Esse é um problema com o qual até hoje me deparo em tudo que escrevo e que passa, penso eu, por um desconhecimento de quem seja meu leitor. Naquele momento era para ter tido alguém que me lesse – supostamente o meu orientador – algo que não se deu. Teria ajudado enormemente.

Mas voltando ao lado luminoso, noto que é o pensamento mesmo o que me salva. Primeiro, uma capacidade de olhar para um todo bastante complexo e achar um meio de ordená-lo. Em seguida, eu diria que o traço da fidelidade ao que está dito e escrito: eu elegi o Foucault quase como se elege um amigo (ou melhor, como dizem, os amigos não se elegem, eles se reconhecem) – e um amigo é alguém que não se trai.

O tema da liberdade em seu pensamento, é preciso dizer, surgiu tardiamente. Foi deveras o seu ponto de chegada. Um ponto de chegada glorioso, por sinal, já que, como ele mesmo afirmou, esse é o assunto chave da filosofia. Mas se você o trouxesse perante ele ao longo de, digamos, oitenta por cento de tudo que ele escreveu e publicou, você o veria, com toda certeza, torcer o nariz.  

De cara e durante boa parte da sua trajetória, Foucault se empenhou em entender o funcionamento dos saberes sobre “coisas” como a loucura, a saúde/doença ou o homem; e o grande diferencial do uso desse conceito (de saberes) foi o fato de que, nele, não está em jogo um sujeito fixo, que “realiza” o conhecimento. Ao conhecer, conforme rezava o senso comum filosófico (e bíblico), esse sujeito dito “do conhecimento” galgaria degraus em sua liberdade (o velho “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”). Pois bem, ao tratar de saberes em vez de conhecimento ele abandonava toda e qualquer perspectiva de liberdade: naqueles, o sujeito, no próprio ato de perseguir um conhecimento, se transforma; ele não tem estatuto autônomo que lhe permita essa elevação, está sempre imerso e na dependência dos demais elementos do jogo de verdade do qual participa.

Ocorre que essa forma de olhar, de início cunhada por ele como arqueológica, pode também ser aplicada às instituições modernas, resultantes da política, como as prisões e o próprio Estado, bastando para isso que se tenha em mente que nada que seja da ordem do discurso (isto é, dos saberes uma vez postos em prática) escapa à busca do poder: a origem de tudo é sempre baixa – e não há o que se lamentar quanto a isso, basta não nos iludirmos. Foucault abraça o método genealógico de Nietzsche quase sem restrições e passa a praticar a genealogia do poder. 

Porém, haver entrado nessa seara o levou, a certa altura, a sair do seu método de trabalho próprio, que havia sempre sido o de levantar, na história, as formas como, enquanto sujeitos, nos relacionamos com a verdade vigente. Por instantes, ele achou que teria encontrado, no conceito de biopolítica, algo próximo de uma verdade dentro do velho estilo do conhecer, ou seja, algo que escapasse do que é contingente e entrasse na ordem do eterno, valido para toda e qualquer situação. Esse surto durou um pouco mais de dois anos e foi em parte alimentado pelas exigências da instituição, o Collège de France, na qual havia começado a trabalhar havia uns cinco. Chegou mesmo a dar o nome de “Nascimento da biopolítica” a um desses cursos anuais, mas o fato é que nunca cumpriu o que prometeu: foi sempre adiando, mediante desculpas, a entrada no assunto, até que o abandonou de vez.

E o motivo para tal foi justamente que um outro conceito apareceu no meio do caminho, permitindo que finalmente se vinculasse ao tema da liberdade, tão abominado por ele durante a juventude – só que por uma via inteiramente diferente. Esse conceito é o de governamentalidade, o qual aprofunda a pesquisa em torno do exercício dos micropoderes da sua fase genealógica. Através dele, se dá conta que o próprio Estado moderno, girando em torno do direito, não é, como tudo leva a crer e desde o seu nascimento, o que concentra o cerne do poder. Ele pode ser visto como uma simples “peripécia” de uma tecnologia bem mais antiga que é a arte da condução das condutas (a própria definição de governamentalidade), dentro das relações perenes que ocorrem entre governantes e governados. 

Verdades são também jogadas nessas relações, funcionando como armas. Isso permite ao analista seguir olhando para as relações que os sujeitos mantêm com elas; mas o grande diferencial está em que essa relação assume um caráter agônico, de luta, de “incitação recíproca” ou de “provocação permanente” – não mais de necessidade – entre liberdades. Diz Foucault a esse respeito:

“São indivíduos livres que tentam controlar, determinar, delimitar a liberdade dos outros e, para tanto, eles dispõem de certos instrumentos para governar os outros. Isso repousa, portanto, bem sobre a liberdade, sobre a relação de si a si e a relação com o outro” (p. 72 do meu livro, tradução livre de uma entrevista que ele deu já bem perto do final da vida, intitulada “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”).

E, não menos importante, nesse momento ele também se desvencilha desse posto que o biopoder lhe dava, o de teórico do poder: algo que ele esclarece jamais ter sido ou querido ser (“eu não sou de modo algum um teórico do poder”, são suas exatas palavras, numa entrevista que contém uma análise retrospectiva de sua obra). Entender a fundo essa afirmação desconcertante – e tudo o que levou a ela dentro dessa recolocação do tema da liberdade – é uma das principais contribuições que eu creio ter dado com esse meu trabalho.

Mas uma vez que você afirma algo num campo específico do saber – como era o caso dessa tese de doutorado em Ética e Filosofia Política – você tem que responder a dúvidas que o próprio campo irá, naturalmente, levantar. Há uma esperada reação por parte dele e isso (ao menos na teoria) é o que dá sentido e saúde ao fazer acadêmico. Na releitura que faço, vejo que eu não me furtei a enfrentar essa reação. 

No caso, eram dois os pontos que identifiquei e tratei de responder. O primeiro diz respeito à própria teoria do Estado de direito, que se constitui como o arranjo moderno da necessária relação perene, como disse acima, entre governantes e governados.  Nessa teoria, que também é a que diz respeito à soberania, há uma ênfase da questão da liberdade, cuja carga passa a estar não mais no Estado (enquanto ser coletivo), mas nos indivíduos: é a existência de um pacto, em que esses abdicam de uma parte de sua liberdade em favor de uma soberania, aquilo que, paradoxalmente, lhes garantirá o usufruto de direitos que configuram uma liberdade inédita, a liberdade dita do cidadão (e os direitos que passa a possuir, ditos humanos). Quem está à frente dessa teoria, como se sabe, é Thomas Hobbes, pensador do século XVII. Foucault, com aquilo que postula, conforme visto acima, acerca da liberdade e do Estado moderno, vai pisar, precisamente (porém não nominalmente), nos seus calos; e esse fato demandava, de minha parte, uma saída.

Saída essa que eu encontrei na leitura do esclarecedor livro de Quentin Skinner, Liberdade antes do liberalismo, na qual ele expõe a teoria chamada neo-romana sobre a liberdade. Teoria essa que não nega os benefícios, para o indivíduo, da teoria da soberania, mas que discorda do seu postulado de que a forma do exercício dessa soberania não é algo que importe. Pode-se viver em liberdade, afirma Hobbes, tanto sob uma ditadura (a do “sultão de Constantinopla”) quanto sob uma democracia (a “república autogovernante de Lucca”): uma vez que o papel do soberano, de garantir que exista um espaço de liberdade do cidadão, esteja sendo cumprido, o resto dirá somente respeito à extensão da liberdade que daí surge (veja-se o quanto isso diz respeito à legitimação de um liberalismo à la ditadores como Pinochet ou Bolsonaro). Os teóricos neo-romanos trazidos por Skinner irão, como Foucault séculos depois, advogar que para que esses cidadãos possam ser de fato livres, o Estado do qual fazem parte necessita também ser livre, isto é: não se é plenamente livre quando se vive na dependência de alguém que tudo pode, que tem carta-branca, que não tem que dar respostas satisfatórias sobre as suas ações.

Recolocar a liberdade em termos da relação direta entre governantes e governados, fugindo, assim da teoria do Estado, tal como estava propondo Foucault, não era, portanto, algo assim tão saído do nada. Era algo que estava lastreado por uma tradição de pensamento estritamente político – mesmo que Foucault em momento algum cite os teóricos neo-romanos. E tudo isso acrescido do detalhe não trivial de que esses teóricos vieram um pouco antes – e não depois – de Hobbes na história do pensamento.

O segundo ponto passível de levantar questionamentos residia no papel normalmente atribuído à política, de ser mediadora de conflitos e fonte primordial de consensos. Duas vertentes da filosofia política naquele momento – anos 1980 –, tanto quanto vinte e tantos anos depois (momento de em que defendi a tese), estavam em voga e empenhadas em encontrar modelos de exercício da política que conseguissem anular todo e qualquer fator de força e/ou dominação que pudesse se estabelecer nesse âmbito, instaurando algo da ordem de uma “verdadeira política”. Ambas essas vertentes eram oriundas da Alemanha, e quem respondia por elas eram, em ordem cronológica, Hannah Arendt e Jürgen Habermas.

Foucault é indagado se essa sua forma de ver tudo sob o prisma das relações agônicas entre governantes e governados, sem a necessidade de uma mediação de algo como a sociedade civil (com a qual contam tanto Arendt quanto Habermas, e que para Foucault é uma “realidade transacional” que, assim como a loucura ou a sexualidade, faz parte de uma tecnologia governamental), não estaria indo na direção de uma antipolítica. Ele responde que é utópico tentar descartar as relações de poder e que o importante é que essas, mais do que pretensamente eliminadas, estejam sujeitas a uma crítica permanente: 

“perguntar-se qual é a parte de não-consensualidade que está implicada numa tal relação de poder, e se essa parte de não-consensualidade é necessária ou não, e então poder interrogar toda relação de poder dentro dessa medida. Eu diria, no limite, não é necessário ser favorável à consensualidade, mas é necessário ser contra a não-consensualidade” (p. 93 do livro, em tradução livre de entrevista dada também próximo de morrer, intitulada “Política e ética: uma entrevista”).

A essa altura da tese eu já estava prestes a adentrar o lado menos espinhoso dessa trajetória filosófica, que ocorreu quando Foucault finalmente decidiu deixar de lado a modernidade e se dedicar àquilo que a Grécia antiga e o helenismo que a sucedeu haviam especulado em torno da liberdade nas relações e a essa arte de conduzir os outros e de conduzir a si mesmo. Aí já se tratava dele perseguindo sem freios o tema em si da tese, a liberdade, de modo a encontrar respostas que repercutissem no presente – e, por sinal, foi algo que eu fiz na última parte do trabalho, relacionando essas descobertas a outros dois desenvolvimentos do saber que eu então acompanhava em paralelo: a psicanálise lacaniana, sob o ângulo da “segunda clínica”, e a descoberta do perspectivismo ameríndio pela etnografia brasileira. (É necessário dizer que, a despeito da sua morte precoce, por Aids, em 1984, Foucault terminou seus dias filosoficamente realizado, tendo cumprido, espantosamente, aquilo a que se propôs desde o primeiro instante; e a minha tese não termina de outra maneira, com um, digamos, final feliz, um abraço otimista e cheio de esperança).

Mas havia ainda um ponto a ser coberto e que diz respeito a Kant e ao Iluminismo, ponto esse que estabelece uma espécie de garantia, ou salvo-conduto, para ele ir atrás dos gregos – em particular, conectar-se com Platão. Ao contrário toda uma corrente esclarecedora, dentre os quais estão filósofos iluministas do século XVIII e, posteriormente, os alemães Dilthey e Habermas, Foucault não parte da aposta numa depuração do conhecimento ou num inquérito sobre os limites da razão e sim da atitude que ele chama de “crítica” para entender as possibilidades dessa grande empreitada que irá definir a modernidade. Kant havia escrito suas três críticas e mais esse pequeno artigo em resposta à pergunta, de um jornal da época, “O que é o Iluminismo?” (ou Esclarecimento), e Foucault vai detectar aí uma defasagem entre crítica e Esclarecimento, ainda que ambos fizessem parte do mesmo projeto. 

Ele entendeu que, para esse pensador essencial, as três críticas eram “de certa forma, o manual de instruções da razão que se torna maior de idade no Esclarecimento; e, inversamente, o Esclarecimento é a era da Crítica”. Esclarecimento de Kant, para Foucault, é a atitude crítica que ele havia recém vislumbrado como o antídoto a toda condução de condutas. Mais uma questão (um tanto “ridícula”, ele reconhece) de “pregação”, de “apelo à coragem (em todo caso)”, diz ele, do que qualquer outra coisa. A ênfase estava nisso, não nas três sacrossantas críticas. Em outras palavras, no limiar da modernidade, Kant havia percebido a governamentalidade: era um inesperado aliado para tudo o que Foucault havia formulado até então (o ano decisivo de 1978) – e para o que estava por vir.

No ano de sua morte, Foucault publicou os dois últimos volumes – de um total de três – da História da sexualidade, que tratam exclusivamente da moral sexual na Grécia antiga e no período subsequente. Esses dois livros resultam das suas pesquisas a partir da virada, acima descrita, ocorrida entre 1978 e 1979, as quais estão registradas, em seus mínimos detalhes, nos cursos se seguiu proferindo no Collège de France até o ano de 1983. O que surge nesses cursos – e logo se cristaliza nos dois livros – é a descoberta da preocupação existente naquele contexto com a construção de um sujeito capaz de conduzir a si mesmo, em vez de ser conduzido. Esse “si” inscrito na prática – que dá nome ao terceiro volume e que foi algo que perdurou durante quase mil anos – do “cuidado de si”. Tal sujeito não era em absoluto um sujeito do conhecimento, não se definia a partir disso, mas da sua capacidade de fazer uso das coisas à sua volta, ao invés de ser escravo delas; os prazeres, por exemplo. 

A moral sexual (mormente para as classes dirigentes) que é descrita nesses dois volumes, construção coletiva marcada por uma austeridade, em nada se aproxima da ideia cristã, posterior, de pecado. Antes, tem a ver com o reconhecimento do sexo como uma força da natureza de tal poderio que qualquer um pode a ela facilmente se assujeitar. É algo perante o que o “si”, que se quer condutor, dono da situação, corre um sério risco; daí a necessidade de se elaborar toda uma reflexão, focada em práticas – uma ética, em suma –, a respeito. Perante elementos assim tão fortes, que põem em risco a própria liberdade do sujeito, estratégias precisam ser criadas. Isso não é nada tão distante da luta moderna dos indivíduos face às disciplinas, às instituições, aos saberes (esses jogos de verdade) e ao próprio Estado que querem a todo custo a sua anulação.

Dentre os que, contemporâneos a ele ou não, caminharam junto com Foucault e tentaram entender o seu legado, aquele que foi mais longe, a meu ver, foi o historiador Paul Veyne, que lançou Foucault, o seu pensamento, a sua pessoa em 2008 (pouco depois de eu ter defendido a minha tese). A certa altura desse livro, ele sintetiza toda a sua filosofia como um esforço em prol de um “decisionismo individual”, algo que eu assinaria embaixo – e, obviamente, teria usado no meu trabalho. Mas eu não gostaria de terminar este texto, que partiu da releitura, quinze anos depois, daquilo que eu realizei, sem uma nota pessoal no sentido de que, ao longo dela, me dei conta de que aquele para quem escrevi essa tese era ninguém menos que eu mesmo. (Fato esse que atenua a sua já mencionada falta de estilo e/ou elegância, pois, como dizem, toda boa escrita é aquela que visa a ninguém mais do que ao seu próprio autor.)

E em nota ainda mais pessoal, fechar dizendo que dentre todas as belíssimas citações que lá fiz dessa monumental obra, a mais bela – e que também sintetiza muita coisa acerca da recalcitrância da liberdade na acepção desse filósofo – é uma que se encontra numa anotação de rodapé e traz um trecho do texto “A vida dos homens infames”, de 1977. No corpo do texto, eu falava sobre a possibilidade de passar a enxergar a política e o direito sob a grade de leitura das relações imediatas entre governantes e governados mencionando que era isso o que interessava a Foucault. A nota abre um parêntese sobre a literatura, que também é um campo onde essas relações aparecem (e igualmente lhe interessava, portanto). É a partir disso que eu então entro com esse texto dele que deveria ter sido a apresentação para um livro que iria fazer em conjunto com a historiadora Arlette Farge a partir de registros administrativos sobre o Hospital Geral da Bastilha, com os quais ambos tinham trabalhado. Esse livro não saiu, mas a introdução sim; e nela, ele declara que essas vidas obscuras que lá aparecem, “existências que são destinadas a passar sem deixar traço algum”, balançaram nele “mais fibras do que aquilo que ordinariamente chamamos literatura” e que, ao escolhê-las, teria se pautado pelo fato de que

“houvesse nas suas infelicidades, nas suas paixões, nos seus amores e nos seus rancores qualquer coisa de cinza e de ordinária aos olhos daquilo que se tem habitualmente como digno de ser contado; que entretanto elas tenham sido atravessadas por um certo ardor, que tenham sido animadas por uma violência, uma energia, um excesso na infelicidade, pela vilania, pela baixaria, pela teima ou pela infelicidade que lhes davam aos olhos daqueles em volta, e à proporção mesmo da sua mediocridade, uma espécie de grandeza assustadora ou lamentável. Eu parti à busca dessas espécies de partículas dotadas de uma energia tanto maior quanto elas são tanto menores e difíceis de discernir.” (p. 86 do livro, em tradução livre).

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Dias Perfeitos, de Wim Wenders

MY WAY

Em seu fantástico livro “Raízes do Romantismo” (Fósforo, 2022), que reúne uma série de conferências proferidas em 1965, o grande teórico Isaiah Berlin se pergunta se o movimento romântico que surgiu na Europa no século XVIII teria tido alguma influência na Revolução Francesa de 1789. A princípio, diz ele, não, já que essa ocorreu, conforme o senso comum, sob o signo do Iluminismo e sua crença absoluta no poder da razão. Nada teria a ver com a fé na singularidade, no gênio e na vontade autorrealizadora que situavam esse também jovem movimento no canto oposto do ringue. Um pressuposto seu, de que o mundo não tem uma ordem predeterminada, de que ele é, na verdade, caótico e informe, bate de frente com a busca iluminista de uma harmonia universal. O melhor resumo disso está quando ele traz Schopenhauer, para quem o homem é

“um ser atirado em uma frágil casca de árvore no vasto oceano da vontade, que não tem nenhum propósito, nem fim, nem direção, e ao qual o homem só pode resistir por sua conta e risco, com o qual o homem só pode chegar a um acordo se conseguir se livrar desse desejo desnecessário de ordenar, de se organizar, de criar um lar aconchegante para si nesse elemento indomável e imprevisível.”

Como corolário dessa percepção está a noção de que o conflito é algo inevitável, de que deve-se assumi-lo como parte integrante das relações humanas: há uma incompatibilidade no que diz respeito a valores; e isso não é algo a se lamentar. O que importa, no fundo, não é quem tem razão, mas a forma como cada um irá defender aquilo em que acredita. Um respeito poderá (e haverá) de nascer disso. Ao contrário da perspectiva universalista que prega a não coexistência de visões de mundo – e, portanto, em nome de uma pretensa harmonia a ser alcançada, acaba, paradoxalmente, gerando  e legitimando guerras – o romantismo teria chegado com a ideia de que está tudo bem que o outro pense diferente: da assunção de uma natureza conflitiva inerente surge a possibilidade de uma convivência pacífica, mediada pelo reconhecimento do outro enquanto vontade autorrealizadora.

O resgate dessas reflexões me veio a partir de Dias Perfeitos, o mais recente filme de Wim Wenders, ainda em cartaz nos cinemas. O filme trata de um senhor de meio idade, Hirayama, residente e (supostamente) natural de Tóquio, que ganha o seu sustento lavando banheiros públicos espalhados por essa metrópole. Todo dia ele sai de sua pequena habitação, onde vive só, e realiza seu trabalho em parceria com um(a) ajudante, não sem ter os seus momentos de contemplação e de distração. É alguém de bem com a vida, que não necessita de muita coisa – nem mesmo de muita conversa com os demais à sua volta – tendo em vista os livros e as fitas cassete dos quais se cerca e usufrui. 

O filme acompanha a sua rotina e me lembrou – e levou a rever – o Simplesmente Feliz (2008), do diretor inglês Mike Leigh, com a divina Sally Hawkins, que retrata uma professora do ensino infantil na Londres atual. São filmes muito próximos, a despeito de esse outro personagem ser extremamente comunicativa, talvez até em excesso: o seu instrutor de autoescola, travado e maníaco, por exemplo, não suporta o seu estilo sempre “pra cima”, único (apesar de acabar se apaixonando por ela). As aparências, contudo, enganam. Cabe reparar que a vivaz Poppy é alguém que conhece bastante o mundo, tendo passado e dado aulas em países do Oriente, por exemplo. É também alguém que não se priva de estar com os miseráveis da própria cidade onde vive, como na cena em que tenta dialogar com um morador de rua, sucumbido à loucura.

A história de Hirayama vai aos poucos sendo revelada em Dias Perfeitos. Trata-se de alguém que abandonou um estilo de vida. Abandonou – no sentido de ter cortado a comunicação – uma família de expectativas altas e, aparentemente, posses. Abandonou, ao que tudo indica, uma carreira nas letras ou, como dizer, no conhecimento – ainda que não tenha largado nem uma, nem outro. É alguém que se ressituou, estabeleceu limites e conseguiu encontrar um equilíbrio único, muito possivelmente se mantendo fiel a seus próprios valores: aqueles presentes nas músicas e nos livros, boa parte dos quais estrangeiros. Poppy é também alguém que não se entende com uma das suas irmãs, adepta de valores tradicionais (mesmo que de classe média, ou trabalhadora). Ambos são seres que encontraram dentro de si uma força singular e suficiente para se manter no mundo e serem felizes. Felizes, ao seu modo.

O que, após ver Dias Perfeitos, me remeteu ao livro de Berlin mencionado no começo foi quase uma intuição: a de que Wenders é, no fundo, um pensador/realizador romântico. Não pretendo aqui elaborar nada muito extenso a esse respeito, porventura resgatando a sua extensa filmografia. Revi, há pouco, Asas do Desejo e me parece que há uma forte dose de romantismo nesse filme. Tendo relido Berlin, agora me parece que está tudo muito evidente. 

O romantismo nasceu, como advoga esse autor, na Alemanha. Essa seria uma primeira ligação, mas, sem dúvida, inteiramente insuficiente. O elemento chave, definitivo, está na cena em que Hirayama anda de bicicleta com a sua sobrinha, a qual havia fugido de casa e se hospedado em sua casa por alguns dias. Ela lhe indaga sobre os motivos do seu rompimento com a irmã, a mãe dela (de resto, como fica claro depois, com o patriarca da família). O tio então lhe explica que o mundo não é uma coisa só, mas sim vários. Existem diversos mundos, os quais não precisam se misturar; um pode olhar para o outro e reconhecê-lo sem a necessidade de dele se apoderar ou o converter.

Como fica claro a esta altura, o romantismo é pacifista – e Wenders, ao falar de Hirayama, reconhece esse traço como o mais presente não só nesse personagem, mas dentre todos os que ele já criou. O que não significa, de maneira alguma, que não haja nele, romantismo, um gigantesco potencial revolucionário, uma força tremenda. Acho que esse é totalmente o ponto que Berlin quis mostrar quando levantou o tema da relação desse movimento com a Revolução Francesa. E, quando vemos filmes românticos em seu sentido pleno e mais profundo, feito os dois que acabo de comentar, é como se dentro de nós algumas Bastilhas tombassem.

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Anatomia de uma queda, de Justine Triet

IR MAIS DEVAGAR, NÃO DEIXAR DE CONCLUIR

Anatomia de uma queda, filme em cartaz de Justine Triet, vencedor de Cannes em 2023, é desses filmes maiores, com cadeira cativa, eu diria, na história do cinema. É um filme de tribunal, a princípio, mas extrapola esse gênero tocando em questões que dizem respeito ao matrimônio, à saúde mental e à escrita literária. Acho que aí reside a sua grandeza: nesse destemor do conjunto, no coquetel bem equilibrado conjugando temas centrais do mundo atual.

Que a diretora tenha investido, em primeiro lugar, num filme de tribunal, não é algo trivial. Esse tipo de filme apresenta personagens que perseguem a verdade com sanha, já que se trata de salvar a própria pele, fazer justiça ou simplesmente vencer uma disputa renhida – e nós espectadores vamos junto. Devemos reconhecer que no mundo atual, da pós-verdade, é uma escolha de tema atípica. 

A trama é a seguinte. Um homem, o marido, cai de uma altura considerável do chalé onde a família residia, e morre. Dado o corte na cabeça, passa a pairar dúvida de se teria sido assassinato – por parte dela, esposa – ou suicídio. Um levantamento do histórico do casal dá margem a que essa dúvida se amplie, tornando-se, por fim, acusação. Uma verdade precisa ser encontrada.

Ocorre que ambos eram escritores. Ela, de sucesso; ele, pelejando para ter mais tempo para se dedicar a esse ofício. Motivos para ressentimentos, ciúmes, discórdia, não faltavam, insuflados pela culpa que o marido sentia por não ter evitado um acidente que tinha, no passado, deixado cego o filho do casal. São essas as balizas para que se monte o circo da justiça, com seus juízes, promotores, advogados, técnicos forenses, psicólogos, testemunhas, imprensa.

Para se chegar a uma verdade, requer-se tempo. Um ano se passa entre o indiciamento da esposa e o tribunal de júri. Para nós, espectadores, também: o filme não é curto, cerca de duas horas e meia em que ficamos pra lá e pra cá a partir das provas que vão sendo apresentadas e/ou surgindo ao longo do processo. Há convicções, fundadas em “evidências”, de ambas as partes. Cada especialista ou testemunha chamado, seja pela acusação, seja pela defesa, tem suas certezas ou quase certezas a partir do respectivo quadrado e após ter estudado ou meditado o assunto em profundidade.

Mas aí é que está! Que nível de profundidade? É nesse ponto que eu acho que o filme atinge em cheio o nosso tempo presente e a sua relação com a verdade. Todos, ao que parece, querem “lacrar”, ter a palavra final. Sim, até certo ponto isso é natural: ninguém quer deixar o caso em aberto, quer-se concluir; mas, dentro de quanto tempo? De imediato? Nesse ponto é que entra, a meu ver decisivamente, o fato de a acusada ser escritora de ficção, ou seja, a força da literatura. 

Em pelo menos duas ocasiões ela desmonta conclusões que parecem óbvias, apontando, em contraponto, para um big picture, para algo menos apressado. Uma delas, inclusive, numa das melhores cenas, quando responde ao psiquiatra/psicanalista da vítima, altamente convicto: então, o que se diz entre as paredes de um consultório perante um profissional com anos de estrada (e que não se deixaria enganar facilmente), é obrigatoriamente a verdade? Não existem sutis cuidados cotidianos, externos ao divã, através dos quais procuramos preservar nossa saúde mental e a dos nossos entes próximos? Um misto de amor, esperança, sonho e paciência que, mesmo assim, às vezes não é suficiente?

Porém, não menos importante do que o exercício perene da dúvida como elemento garantidor da verdade – um traço distintivo da literatura e das artes de um modo geral – está o fato de que em nossas vidas, em certas ocasiões, precisamos concluir. Um outro diálogo marcante do filme, já perto do final, ilustra isso. Ele envolve o filho do casal, um garoto de apenas 11 anos que acompanhou todo o julgamento e, tal qual nós, espectadores, de forma sofrida e honesta ainda não consegue saber em definitivo quem tem a razão. Em conversa com sua tutora judiciária ele pede auxílio e ela não sabe como ajudá-lo, a não ser lhe dizendo que há situações que, mais do que plena convicção, demandam uma decisão. E a certeza? Tenho, então, que inventa-la, fingir que a tenho? diz ele. Não, afirma ela, é diferente. 

Como dizem alguns lacanianos, é necessário, a certa altura de uma análise, sair do gozo do pensamento. Uma hora você precisa agir, concluir, em prol da sua liberdade. Depois você se acerta com a razão.

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Priscilla, de Sofia Coppola

ICONOCLASTA POR EXCELÊNCIA E, TALVEZ, NECESSIDADE

Recentemente, revi o documentário que Wim Wenders fez sobre Tóquio, Tokyo Ga (1985), e é a partir dele que encontro elementos para tentar entender esse outro filme atualmente em cartaz, Priscilla, de Sofia Coppola. São ambas criações que reviram o passado e trazem personagens de uma, digamos, realeza artística. Priscilla resgata a relação entre o Rei do Rock, Elvis Presley, e a jovem texana que ele conheceu numa base militar norte-americana na Alemanha do pós-guerra, tornando-a sua namorada e, pouco depois, esposa: Priscilla Presley. Já o filme de Wenders se refere ao cineasta japonês Yasujiro Ozu, cujos filmes em sua totalidade foram feitos e se passavam naquela cidade. Wenders ama o cinema de Ozu e quis melhor compreender o que estaria por trás desse amor. Ele entrevistou alguns dos seus colaboradores, então ainda vivos, cujos depoimentos revelam, nesse personagem, uma verdadeira majestade – um deles, aliás, é explicito a esse respeito –, pela forma como ele tratava as pessoas, como imprimia sua marca nas suas criações.

Mas a conexão “régia” entre ambos esses filmes não é, nem de longe, a principal. A minha tese é a de que Sofia Coppola é a expressão, nos dias atuais, do cinema de Wenders; ou melhor, de que ela é wendersiana por excelência. Se não, vejamos.

Priscilla, que se baseia num livro de memórias da própria personagem-título (além de tê-la como produtora executiva), nos apresenta um Elvis, basicamente, freak. Eu não assisti ainda ao também recente Elvis, de Baz Luhrman e, portanto, posso estar sendo leviano ao supor que essa nova versão irá ferir quem dele gostou e/ou através dele aumentou a sua admiração por esse ícone da música ocidental. Sei que traz um “culpado” para o quão perturbado ele teria ficado ao longo da carreira: seu empresário, os negócios.

O filme de Sofia Coppola vai por um outro lado. Ressalta o que seriam as qualidades de um príncipe, que descobre a sua princesa e procede conforme todo o script, tratando-a, de início, com o máximo de decoro e respeito. Em sua profissão, ele era um puro animal que mexia com a libido das massas. Mas, com ela, beirava a pudicícia! (Tudo bem: ela era uma garota quando se conheceram e começaram a namorar, mas, a certa altura, houve a permissão da sociedade e, principalmente, dela; contudo, o ato carnal propriamente só se consumou após o súbito casamento, quando havia muito que eles já compartilhavam o leito). 

Além disso, até em situação pior do que uma princesa de verdade, Priscilla não tinha direito nem a trabalhar: tinha que estar sempre no outro lado da linha quando ele telefonasse (não havia celulares então). Era, em suma, um bibelô – mesmo quando estava prestes a ser mãe, ele resolve que esse era o momento de “darem um tempo”. Sem muito alarde e bem postumamente, Elvis cai do trono; primeiro, com o livro da sua ex, em seguida, com o filme de Sofia.

O que, além de um senso de justiça histórica e uma certa sororidade, teria atraído Sofia na direção da história de Priscilla? Respondo que vejo uma enorme coerência com a sua busca propriamente cinematográfica. Os filmes de Sofia Coppola em geral trazem o lado B. Sendo filha de quem é – e tendo adotado a mesma profissão que o pai, cineasta de épicos – eu acho que ela resolveu se dedicar à franja, àquilo que resta. Como a dizer que, no final de cada dia de filmagem, sobra ainda algo a ser contado – algo da ordem do doméstico.

Se formos reparar, na maioria dos filmes dessa diretora há a presença de alguma coisa grandiosa que, contudo, aparece enquanto mera insinuação. Em O estranho que nós amamos (2017), é a Guerra Civil Americana, em Maria Antonieta (2006), a Revolução Francesa, até mesmo em Encontros e desencontros (2003), uma Tóquio e um Japão desafiadoramente modernos e de difícil (ou impossível) leitura; e, invariavelmente, o que é mostrado são as repercussões dessa ordem grandiosa, ou pública, no lado de dentro, no ambiente privado – no caso desses três, respectivamente, no internato feminino, no grande palácio, nas dependências do hotel. E quando esse espaço privado não fica suficientemente claro nas retinas do espectador, Sofia ainda recorre aos nossos ouvidos, via trilha sonora: nunca hei de esquecer dessa parte de Maria Antonieta, com canções de bandas de rock dos anos 1980 (Siouxsie, Gang of Four, Adam and the Ants, Cure), as bandas que eu escutava e que jamais esperaria num filme “de época” como aquele.

Em Priscilla, temos tudo isso novamente. Temos a mansão Graceland – quase uma prisão, aliás – mas, mais ainda, a certa altura, numa cena em que o marido estelar adentra a residência com o seu onipresente entourage e todos se sentam à mesa para uma refeição: o que aparece na tela, de forma quase obstinada, é somente o rosto um tanto incrédulo da esposa. Não é o público – ou, no caso, o semipúblico – que interessa, mas o privado profundo.

Dou razão a quem, a esta altura, estiver se perguntando: e cadê o Wim Wenders e seu filme homenagem nisso tudo? Tokyo Ga é uma riquíssima meditação sobre esse meio de expressão, partindo da obra de Ozu (um cinema, diga-se de passagem, muito doméstico). O narrador, em inglês(!), é o próprio Wenders que, lá pelas tantas, lança aquilo que eu chamaria de luz decisiva ao teorizar sobre o significado do que está na lápide do túmulo de Ozu: o mero velho caractere chinês da nulidade, MU, “nothingness”, dispensando até o nome de quem lá descansa. Essa nulidade é, ele pensa, o contrário da realidade, que é algo que todos nós carregamos. Cada um de nós, espectadores, está imbuído de realidades, imagens, ideias e, com elas, vamos ao cinema. A grande magia então acontece quando algo lá na tela, qualquer coisa, qualquer elemento, também uma realidade (visível ou audível), nos captura porque conversa com algum elemento da nossa realidade, ambos possuindo verdade. É algo de muito privado; e não é todo cineasta que consegue chegar nisso. Ozu, na opinião de Wenders, conseguiu; a sua Tóquio, não mais presente, conversava conosco (ou com ele, Wenders) nesse nível, remetendo a estados nossos os mais íntimos – não à toa ele dedica o filme aos seus pais e ao seu irmão, o seu núcleo familiar. Uma comunicação se dava, ligando seres tão distantes geograficamente (Wenders, ainda como espectador em Berlim, Ozu como “rei” de Tóquio).

Mas insistamos em Tóquio! Novamente, será por mero acaso que Sofia Coppola situou a sua história de amor mais pungente, o seu encontro-mor cinematográfico, Encontros e desencontros, nessa cidade do início deste século? Cidade essa, como fica muito claro em Tokyo Ga – e no recado final de Ozu sobre a vigência do nada –, tão propensa ao desencontro? O título original desse filme, “Lost in translation”, creio que nos diz muito. Referindo-se à barreira linguística enfrentada pela dupla amorosa norte-americana perante a cidade, acaba pairando sobre os personagens que, ainda assim, dão conta de encontrar, ou de criar, um refúgio comunicativo (entre si mesmos). A realidade de um acaba atingindo a realidade, o verdadeiro, do outro e, por essa via, saem, saímos todos, da nulidade. Isso é ou não é Ozu/Wenders?

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